O VELHO AMIGO

O VELHO AMIGO

Quando os faróis iluminaram a figura daquele homem, à margem da estrada, eu apenas pude vislumbrá-lo a carregar uma criança. Ele seguia devagar, de costas para mim, e eu consegui distinguir, apoiado sobre seu ombro, um pequenino rosto protegido por sua mão.

Matam-me de remorso esses caminhantes à margem da vida, ao longo das estradas secundárias, açoitados pelo vento, gélidos de frio, castigados pela chuva, noite adentro.

Aquela imagem logo se perderia na escuridão, após a minha passagem.

Mas instintivamente parei.

O caminheiro aproximou-se, estreitando junto ao peito o seu pequenino. Um retalho de plástico cobria o corpo do filho, o pai vestia um agasalho surrado de lã, e tinha os sapatos barrentos e a roupa molhada. Era um homem magro, moço e, nítido, era o seu cansaço. Perguntei de onde ele vinha, para onde ia, e me ofereci, se eu lhe pudesse valer.

Serenamente, apontou para uma luz na escuridão, a pouca distância, além de nós. A luz pálida mal permitia a visão de uma edícula tosca, sua moradia. Ele regressava de um posto de saúde, oito quilômetros longe dali, aonde tinha ido em busca de assistência para o filho ardendo em febre. Na casa tinham permanecido a mulher e mais dois filhos.

“Graças a Deus, ele já está melhorzinho”, disse.

Tentei uma ajuda, mas o homem apenas agradeceu e confessou-me sua gratidão.

Quando parti, ainda pude ver-lhe o vulto a caminhar na direção da luz acesa, como uma estrela guia.

Ele tinha dito: “Graças a Deus”, antes de ir embora.

Falou de Deus com a intimidade de um velho amigo. Seu Graças a Deus não me soou como simples e rotineira forma de expressão.

Estou convencido de haver um Deus. Não um Deus particular, privando, exclusivo, a quem às vezes pedimos e agradecemos em impulsos mecânicos.

Existe um Deus habitante de toscas moradias ilhadas na escuridão em espaços distantes.

Esse Deus deve passar fome e frio e delirar em febre ao lado de pequeninos desvalidos. Esse Deus deita no leito rústico onde o amor é feito com amor. Esse Deus conduz o passo de homens capazes de carregar nos braços os filhos amados por ínvios caminhos. Esse Deus vela o sono calmo de criaturas cuja insônia não os desperta; dá-lhes a fé e a esperança já de tantos, perdida; oferece a cada um, na simplicidade da vida, uma réstia da felicidade possível cuja descoberta algumas pessoas não conseguem enxergar; não lhes impõe, enfim, mais sofrimento e angústia além de sua força para suportá-los.

Então, fui embora sem remorsos, nem pena. Eu seguia só. E, talvez, o homem, ouvindo o ruído do carro a afastar-se, deve ter dito a seu velho e íntimo amigo:

“Vá com ele. Seu caminho é longo e faz escuro”.

Autor Desconhecido

Posted on 9 de Setembro de 2020, in Espiritualidade. Bookmark the permalink. Deixe um comentário.

Deixe um comentário